Momentos dramáticos marcaram os preparativos de um
acontecimento inédito: a transferência em peso de uma casa real européia, a
bordo de 15 navios, para o continente americano
Lilia Moritz Schwarcz
Na madrugada de 25 de novembro de
1807, quando d. João encerrou a sessão do Conselho de Estado, a decisão estava
tomada. A família real deveria embarcar para o Brasil daí a dois dias, antes
que as tropas de Napoleão, que já tinham cruzado as fronteiras lusitanas, alcançassem
Lisboa. Chegara enfim a hora de se executar um plano que já se conhecia de cor,
e de traçar, rapidamente, o procedimento operacional de uma gigantesca tarefa:
mudar, da terra para o mar, tudo e todos que significassem a sobrevivência e a
sustentação do governo monárquico a ser instalado no Rio de Janeiro.
Fazer as malas, zarpar rumo ao Brasil
e lá estabelecer um império não era uma idéia nova. O translado da família real
para essa colônia pairava como uma possibilidade acalentada há tempos e sempre
ventilada nos momentos em que a realeza portuguesa sentia-se ameaçada em
sua soberania. Já em 1580, quando a Espanha invadiu Portugal, o pretendente ao
trono português, o prior do Crato d. Antônio – filho ilegítimo do infante d.
Luís – foi aconselhado a embarcar para o Brasil. Também o padre Vieira apontou
o Brasil como refúgio natural para d. João IV – “ali lhe assinaria o lugar para
um palácio que gozasse, ao mesmo tempo, as quatro estações do ano, fazendo nele
o quinto império (...)”. Em 1738, no reinado de d. João V, o conselho veio de
d. Luís da Cunha, que via na mudança possibilidades de um melhor equilíbrio
entre a metrópole e a colônia, então abarrotada de ouro. Em 1762, temendo uma
invasão franco-espanhola, Pombal, ministro de d. José I, fez com que o rei
tomasse “as medidas necessárias para a sua passagem para o Brasil, e defronte
do seu Real Palácio se viram por muito tempo ancoradas as naus destinadas a
conduzir com segurança um magnânimo soberano para outra parte de seu Império
(...)”.
Não é, pois, de estranhar que, no meio
da convulsão européia, os políticos que rodeavam o príncipe d. João trouxessem
à tona a velha idéia. Mas o tempo era curto, a viagem longa e cheia de
imprevistos. Era a primeira vez que uma casa real cruzava o Atlântico e tentava
a sorte afastada do continente europeu. Longe dos tempos dos primeiros
descobridores, que atravessaram o oceano para encontrar riqueza e glória em
terras americanas, agora era a própria dinastia de Bragança que fugia (na visão
de alguns), evitava sua dissolução (na visão de outros), ou empreendia uma
política audaciosa, escapando da posição humilhante a que Napoleão vinha
relegando as demais monarquias.
O plano era mais complexo do
que se podia imaginar. Afinal, seguiriam viagem, acompanhando a Família Real,
não apenas alguns poucos funcionários selecionados. Já em relativa prontidão e
expectativa, encontravam-se outras inúmeras famílias – as dos conselheiros e
ministros de Estado, da nobreza, da corte e dos servidores da Casa Real. Não
eram, porém, indivíduos isolados que fugiam, carregando os seus objetos
pessoais, suas indecisões e receios. Era, sim, a sede do Estado português que
mudava temporariamente de endereço, com seu aparelho administrativo e
burocrático, seu tesouro, suas repartições, secretarias, tribunais, seus
arquivos e funcionários. Seguiam junto com a rainha e o príncipe regente tudo e
todos que representassem a monarquia. As personagens, os paramentos necessários
para os costumeiros rituais de corte e cerimoniais religiosos, as instituições,
o erário... enfim, o arsenal necessário para sustentar e dar continuidade à
dinastia e aos negócios do governo de Portugal. Como disse Joaquim José de
Azevedo, futuro visconde do Rio Seco, o que atravessaria os mares era aquela
“amplidão que tinha exaurido sete séculos para se organizar em Lisboa”, e todo
esse aparato devia tomar o rumo do cais.
No cais de Belém, de um momento
a outro, acorreram milhares de pessoas, com suas bagagens e caixotes, isso sem
esquecer de toda burocracia do Estado e das riquezas que viajavam com o rei.
Não havia tempo a perder, e imediatamente deliberou-se que os ministros de
Estado e empregados do Paço viajassem com a família real. Outra ordem deixou
claro que todos os súditos que pretendessem seguir viagem estavam livres para tanto
e, não havendo lugar nas embarcações, poderiam preparar navios particulares e
acompanhar a real esquadra.
Já era meia-noite, mas, apesar
do horário avançado, Joaquim José de Azevedo foi chamado ao Palácio da Ajuda e
nomeado superintendente geral do embarque. Além dele, foram convocados o
marquês de Vagos, chefe da câmara real, e o conde do Redondo, responsável pela
ucharia – setor equivalente à despensa, onde se abrigavam todos os pertences da
casa real, tanto os alimentos, como os utensílios domésticos. Já o almirante
Manoel da Cunha Souto Maior, comandante geral da esquadra portuguesa, ficou
encarregado de apresentar mapas das disposições dos navios. Em seguida, o
superintendente tratou dos procedimentos para o traslado dos tesouros reais do
Palácio das Necessidades e o da Igreja Patriarcal. Foi depois para o cais de
Belém, onde, munido dos mapas entregues pelo almirante, mandou armar uma
barraca “para dali repartir as famílias pelas embarcações, segundo a escala de
seus cômodos, assim como para enviar todos os volumes do Tesouro que chegavam.
Tal lida continuou até o momento de embarque de d. João”. Havia uma ordem de
que ninguém poderia embarcar se não tivesse em mãos uma “guia” fornecida por
ele.
Quem também não perdeu tempo
foi d. Antonio de Araújo e Azevedo, famoso representante do grupo francês.
Naquela mesma madrugada, mandou que seu funcionário, Cristiano Müller,
encaixotasse os papéis de Estado que estivessem sob seus cuidados e nesse lote
incluiu também sua livraria particular: 34 grandes caixotes foram acomodados na
nau Medusa. Foram eles que embarcaram no lugar da Real Biblioteca, que ficou
esquecida no cais.
A pressa impedia que os
procedimentos se dessem de maneira organizada. As autorizações, licenças,
nomeações e ordens de embarque vinham de variadas fontes. Bom exemplo é o caso
do mestre de equitação do palácio real, Bernardo José Farto Pacheco que, para
poder embarcar, recebeu ordens do estribeiro-mor, do intendente das reais
cavalariças e ainda do conde de Belmonte. Detalhe: Bernardo não conseguiu
viajar, pois apesar do alvará, o comandante da fragata não o aceitou a bordo,
pela falta da guia necessária.
A despeito do estado de alerta
e do fato de que a frota, ou parte dela, estivesse sendo armada desde fins de
agosto, o ambiente era caótico. No começo de novembro, antes da partida da
família real, um rico mercador de Lisboa escrevia ao sogro que ainda não
conseguira passagem porque muitos queriam partir e eram poucos os navios.
Porém, desconfiado, parecia decidido a deixar a capital, pois “os preparativos
nos navios continuam a toda pressa e tudo indica que se trate de embarque”.
Mesmo assim, nenhum expediente
realizado previamente e nem as prontas providências coordenadas por Joaquim
José de Azevedo foram suficientes para impedir que o caos se estabelecesse na
hora do embarque. Pior é que Lisboa vinha sendo castigada por um forte vento
sul; chovia torrencialmente e as ruas e caminhos se transformaram em passarelas
de lama, dificultando as idas e vindas até o cais de Belém. E não era tarefa
simples reunir, distribuir e embarcar os ilustres viajantes, dividir os
marinheiros e oficiais da Marinha e ainda abastecer os porões dos navios com
uma quantidade suficiente de víveres e água potável. No registro de uma
testemunha, arregimentou-se “muita gente para dar a 17 navios de guerra um
bastante número de marujos e finalmente procurou-se pôr neles os mantimentos
necessários, que contudo alguns navios não puderam haver como precisavam na
confusão causada pela urgência do caso”.
Os casos e incidentes se
multiplicavam. Foi durante esses dias de corre-corre, ainda antes do embarque,
que o núncio apostólico de Lisboa, d. Lourenço de Caleppi, compareceu ao
palácio da Ajuda, em visita de solidariedade. Freqüentador da Corte, foi
convidado por d. João a acompanhá-lo na viagem. Apesar de seus 67 anos, o
núncio aceitou a proposta e, conforme as instruções recebidas, foi
imediatamente procurar o ministro da Marinha, visconde de Anadia, que lhe
destinou a nau Martim de Freitas, ou a Medusa, onde, junto com seu secretário,
Camilo Luis Rossi, teria lugar garantido. Mas a confusão era tamanha que de
nada adiantaram as referências de Caleppi, que não conseguiu lugar em nenhuma
das naus que lhe haviam sido reservadas.
O tenente irlandês Thomas O’Neill, que estava em um dos navios da esquadra inglesa, consultou a descrição feita a ele por um oficial a serviço de d. João. Ainda que evidentemente exagerado, o relato não deixa de passar uma idéia do ambiente naqueles dias, quando o “pânico e o desespero tomaram conta da população e muitos homens, mulheres e crianças tentaram embarcar nas galeotas até algum navio”. Foi o irlandês quem registrou que “muitas senhoras de distinção meteram-se na água, na esperança de alcançar algum bote, pagando algumas com a própria vida”.
O tenente irlandês Thomas O’Neill, que estava em um dos navios da esquadra inglesa, consultou a descrição feita a ele por um oficial a serviço de d. João. Ainda que evidentemente exagerado, o relato não deixa de passar uma idéia do ambiente naqueles dias, quando o “pânico e o desespero tomaram conta da população e muitos homens, mulheres e crianças tentaram embarcar nas galeotas até algum navio”. Foi o irlandês quem registrou que “muitas senhoras de distinção meteram-se na água, na esperança de alcançar algum bote, pagando algumas com a própria vida”.
Agravando ainda mais a
situação, famílias de camponeses, assustadas com as notícias de que os
franceses estariam se aproximando, haviam abandonado tudo – “o trigo nos
celeiros, o milho um nas eiras, outro nas terras, a fruta nas árvores, a uva
nas vinhas, os gados dispersos (...) e cheias de aflição se refugiaram na
capital, onde se acham receando não terem com que subsistir. Mas neste caso o
remédio é recorrer aos amigos; estes são os Santos, e mais que todos o Santo
dos Santos, Jesus Cristo. (...)”
Nas praias e cais do Tejo, até
Belém, espalhavam-se pacotes, caixas e baús largados na última hora. No meio da
bagunça e por descuido, a prataria da Igreja Patriarcal, trazida por quatorze
carros, foi esquecida na beira do rio e só alguns dias depois voltou para a igreja.
Carros de luxo foram deixados, muitos sem terem sido descarregados. Alguns até
optaram por largar a mala, embarcando de mãos vazias, apenas com a roupa do
corpo. O marquês de Vagos percebeu um pouco tarde que as carruagens e arreios
da casa real tinham sido esquecidos, e ali mesmo, do convés do navio onde se
acomodara e que já partia, teve tempo de expedir um aviso, “em linguagem rude”,
para que fretassem um “iate” para transportar todo aquele equipamento para o
Brasil.
O tom geral era de nervosismo e
destempero. “A desgraça, a desordem e o espanto existiam por toda a parte em
Lisboa, quer em terra quer no mar (...). Copiosas e tristes algumas lágrimas
derramaram-se por esta ocasião, uns choravam a separação de pais, maridos,
filhos e mais pessoas queridas, outros a criticar posição da pátria invadida
por exército inimigo e ao recordarem-se dos males que iriam sofrer ficando sem
protetores e no meio dos terríveis franceses.” De fato, a reação dos lisboetas
oscilava do espanto à revolta. Joaquim José de Azevedo, que, como vimos, tinha
armado uma barraca no cais para organizar o embarque, assim interpretou o
sentimento do povo: “vagando pelas praças e ruas, sem acreditar no que via,
desafogava em lágrimas e imprecações a opressão dolorosa que lhe abafava na
arca do peito, o coração inchado de suspiros: tudo para ele era horror; tudo
mágoa; tudo saudade; e aquele nobre caráter de sofrimento, em que tanto tem
realçado acima de outros povos, quase degenerava em desesperação!”
As descrições de época sobre o
embarque de d. João são em geral tão dramáticas quanto contraditórias. Numa das
versões, ele teria chegado ao cais vestido de mulher; em outra teria partido
durante a noite a fim de evitar maior reação popular. Em outra, ainda, teria
entrado no porto acompanhado apenas por seu sobrinho e ninguém o aguardava.
Dois cabos de polícia que estavam ali por acaso, ajudados por gente do povo e
debaixo de forte chuva, colocaram algumas tábuas sobre a lama para que pudessem
caminhar até o coche e de lá tirar d. João, que foi acomodado na galeota que o
conduziria ao navio Príncipe Real, atracado na barra do Tejo. Outros relatos,
ainda, insistem na insensatez do embarque, ridicularizando a atitude da família
com a única frase lúcida emitida pela rainha, a esta altura, demente: “Não
corram tanto ou pensarão que estamos fugindo.” Não é o caso de multiplicar as
narrativas desse momento, carregadas de adjetivações e muita imaginação. No
entanto, em tempos de rachadura do absolutismo, a representação parecia
anunciar o fim de uma era: foi com muita discrição e sem nenhuma pompa que o
príncipe regente deixou Portugal e embarcou rumo ao Brasil.
Concluídos os trâmites para a
partida e com todos a bordo, só faltava o tempo melhorar para que se desse a
ordem de zarpar. O dia 29 amanheceu claro e a esquadra saiu do Tejo, alcançando
o mar. Nas portas do oceano, os navios ingleses estavam de prontidão. O
encontro das frotas foi anunciado, reciprocamente, por uma salva de vinte e um
tiros, como que a selar o pacto pacientemente aguardado pela Grã-Bretanha.
Enquanto isso, o almirante inglês Sidney Smith destacou as quatro naus que
acompanhariam a esquadra portuguesa até o Rio de Janeiro. Em seguida, foi a
bordo do Príncipe Real cumprimentar o regente e recebeu, do vice-almirante
português, a lista das 15 embarcações que compunham a real esquadra: oito naus
de linha, quatro fragatas, dois brigues e uma escuna. Este número varia nos
registros das testemunhas e também em estudos posteriores, mas a diferença não
altera a visão de conjunto. Além da frota real, havia número expressivo de
navios mercantes particulares que saíram em seu rastro. Seriam cerca de 30, mas
podem ter sido muitos mais. O navio inglês Hibernia avistou 56 navios, ao
anoitecer do primeiro dia de viagem. O próprio comandante Smith mal fez as
contas, o que ele via era “uma multidão de grandes navios mercantes armados”.
De toda a forma, a esquadra real compunha uma respeitável unidade de combate.
Os oito navios de guerra eram equipados com baterias de canhões que variavam
entre 64 e 84 peças, a maioria com calibre 74. As fragatas estavam armadas,
cada uma, com 32 ou 44 canhões, os brigues tinham 22 peças cada um e a charrua,
que transportava mantimentos, 26 canhões.
A família real – d. Maria, o
príncipe regente e sua mulher, seus oito filhos, a irmã da rainha, a viúva do
irmão mais velho de d. João e um sobrinho espanhol de Carlota Joaquina – foi
distribuída pelos navios de maior calibre. No Príncipe Real estavam a rainha d.
Maria, com 73 anos; o príncipe regente d. João, com seus 40 anos; o príncipe da
Beira, infante d. Pedro, de 9 anos; seu irmão infante d. Miguel, com 5 anos; e
o sobrinho d. Pedro Carlos. No Afonso de Albuquerque iam a princesa, mulher do
regente, dona Carlota Joaquina, 32 anos, com suas filhas: a princesa da Beira
Maria Teresa, 14 anos, e as infantas Maria Izabel, Maria d’Assumpção e Anna de
Jesus Maria, de 10, 2, e 1 ano, respectivamente. No Rainha de Portugal viajavam
a viúva do irmão mais velho do regente, dona Maria Benedita, com 61 anos; a
irmã da rainha, dona Maria Ana, de 71; e ainda as outras filhas de d. João e
Carlota Joaquina, as infantas Maria Francisca de Assis e Isabel Maria, de 7 e 6
anos.
Há muitas dúvidas sobre o
número de embarcados. O secretário do bispo Caleppi, que a tudo assistiu de
perto, avaliou que 10 mil pessoas faziam parte da esquadra real. Já Pereira da
Silva incluiu em seus cálculos os muitos negociantes e proprietários que haviam
fretado navios para seguir a esquadra e não demonstrou dúvidas: “cerca de
quinze mil pessoas, de todos os sexos e idades, abandonaram neste dia as terras
de Portugal”. Uma minuciosa listagem relaciona, nominalmente, cerca de 536
passageiros – nobres, ministros de estado, conselheiros e oficiais maiores e
menores, médicos, padres, desembargadores. Isso sem contar os termos imprecisos
que surgiam ao lado do nome dos passageiros, tais como: “visconde de Barbacena
com sua família”; “o conde de Belmonte, sua mulher e o conde seu filho com
criados e criadas”; “José Egídio Alves de Almeida com sua mulher e família”; “e
mais sessenta pessoas, entre homens e mulheres, sem contar as famílias que os
acompanhavam” ou mesmo o indefinido “e outros”. Para se ter uma idéia, junto
com o duque de Cadaval embarcaram a mulher francesa, quatro filhos, um irmão, e
mais onze criados, incluindo um “homem pardo criado para varrer” e algumas
famílias aditadas à mesma casa. O marquês de Belas levou um séqüito de 24
pessoas. O mesmo documento listou os oficiais da casa real, que não eram
poucos. Apenas a ucharia empregava 23 “moços”, sendo que cada um deles vinha
acompanhado de sua família, o mesmo se dando com os 14 moços da cozinha real.
Um outro documento, redigido no calor da hora, pretendia registrar todos os
passageiros, mas depois de relacionar alguns dos mais conhecidos nomes da nobreza,
a escrita foi encerrada bruscamente com uma informação taxativa: “E mais 5.000
pessoas.”
Se levarmos em conta a
população dos navios mercantes, a figura será ainda outra, pois o número de
marinheiros e oficiais era elevado. Uma série de manuscritos existentes na
Biblioteca Nacional revela que ao atingir o litoral brasileiro, em janeiro de
1808, alguns dos capitães elaboraram uma listagem informando ao conde dos
Arcos, vice-rei do Brasil, a situação de suas guarnições. O comandante do
Martins Freitas, além de fazer um mapa minucioso da tripulação, relatou que
também estavam a bordo as famílias pertencentes aos oficiais da guarnição e
parte da família do duque de Cadaval. O fato é que cada navio carregava uma
pequena multidão. A acreditar-se que parte significativa dos oficiais e de suas
famílias teriam permanecido na colônia, não estranharia chegar-se a mais de 10
mil emigrados. A cifra, porém, continua e continuará controversa.
De toda maneira, o número de
embarcados era bem elevado e, com certeza, superior às primeiras estimativas e
provisões. Esse era o drama da nau Minerva, que não havia sido preparada com
antecedência e apresentou problemas na hora do embarque. Conta o capitão que,
até o dia 26 de novembro, esta fragata esteve “de banda por não ser possível
aprontar-se”. Apesar de só ter a bordo “algum biscoito e aguada” e das “tristes
circunstâncias em que se achava o Real Arsenal da Marinha, pela confusão e
falta de expediente nas diferentes repartições”, o capitão não perdeu tempo
para atender ao príncipe e partir no dia 29. Quando atracou na Bahia, em 10 de
janeiro de 1808, a Minerva estava a zero.
A viagem não seria fácil, ainda
que não se tenha notícia de acidentes graves ou algum óbito. Famílias
desmembradas e alojadas em diferentes navios, bagagens desviadas ou largadas no
cais, racionamento de comida e água, excesso de passageiros e falta de higiene
– que obrigou as mulheres a cortar os cabelos para evitar a ação dos piolhos –
foram alguns dos problemas decorrentes da emergência do embarque. E pela
frente, cerca de dois meses de viagem. Para complicar, uma tormenta se armou
logo no início da jornada, e outra, em meados de dezembro, lá pela altura da
Ilha da Madeira, provocando a dispersão de alguns navios e uma mudança de
planos: apesar de parte da frota já ter tomado a direção do Rio de Janeiro, o
Príncipe Real e as embarcações que o acompanhavam alteraram o rumo, em direção
à Bahia.
Excluindo esses momentos mais
inseguros, a viagem correu tranqüila, no que diz respeito aos humores da
natureza e à estrutura das embarcações, que, apesar das avarias, alcançaram seu
objetivo. O cronista Luiz Edmundo descreve os transtornos que se deram pelo
excesso de passageiros: “muitos sem cama onde dormir, cadeira, banco para
sentar, deitando-se ao relento, sobre as tábuas nuas dos conveses, sem prato
certo onde comer, disputando em sórdidas gamelas, nas cozinhas, o alimento
frugal”. E a travessia arrastava-se monótona. Além de acompanhar a evolução dos
veleiros da frota, cantava-se ao som da viola ao poente e, nas noites de luar,
jogava-se cartas: o faraó, o espenifre, o pacau e o chincalhão.
Depois de 54 dias no mar, em 22
de janeiro de 1808, o Príncipe Real atracou em Salvador – onde se quedaria por
um mês, seguindo depois para o Rio de Janeiro. Atrás dele e aos poucos, foram
chegando os outros navios. A situação era inesperada, assim como imprevisível
era a novidade de uma corte migrada e aportada em sua colônia. Mas a história
não é mesmo um exercício do certo. Ainda em alto-mar, d. João recebeu um belo
presente do governador de Pernambuco: o brigue Três Corações foi ao seu
encontro, carregado de mantimentos e muitas frutas tropicais. Entre cajus e
pitangas, a colônia americana
abria as portas para um evento inusitado: receber o seu príncipe português.
Lilia Moritz Schwarcz é professora do departamento de
Antropologia da Universidade de São Paulo e autora do livro A longa viagem da
biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002, em co-autoria com Paulo Cesar de Azevedo e
Angela Marques da Costa, obra da qual foi retirada grande parte deste artigo.
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