Em Salvador, a família real fez sua primeira parada. A
recepção foi calorosa e a despedida, lamentada.
Eduardo Borges
“O
rei da Espanha mendigando em solo francês a proteção de Napoleão; o rei da
Prússia foragido da sua capital ocupada pelos soldados franceses; o Stathouder,
quase rei da Holanda, refugiado em Londres; o rei das Duas Sicílias exilado em
sua linda Nápoles; as dinastias da Toscana e Parma, errantes; o rei do Piemonte
reduzido à mesquinha corte de Cagliare; (...) a Escandinávia prestes a implorar
um herdeiro dentre os marechais de Bonaparte; o imperador do Sacro Império e o
próprio Pontífice Romano obrigados de quando em vez a desamparar seus tronos
que se diziam eternos e intangíveis”. As palavras do historiador Oliveira Lima
sintetizam bem a conjuntura política européia em 1807.
O
reino governado pela família Bragança não estava imune àquele conturbado
cenário. Portugal vivia o dilema de se colocar entre os interesses britânicos e
o projeto imperialista de Napoleão. Em 27 de outubro de 1807, a França assinou
com a Espanha o Tratado de Fontainebleau, que deixou expostas as fronteiras
portuguesas a uma invasão iminente. Um mês depois, a Corte lusitana estava
pronta para abandonar o país e transferir-se para sua maior colônia.
D.
João e sua comitiva partiram da foz do Tejo em 29 de novembro. O destino: Rio
de Janeiro. Mas os deuses meteorológicos providenciaram um desvio no percurso
da história. Em 9 de janeiro, uma forte tempestade fez a armada se dispersar, e
embora algumas naus lograssem chegar à costa fluminense, a que levava o
príncipe aportou na mesma região brasileira onde Pedro Álvares Cabral dera
início à colonização, 308 anos antes: a Bahia. Mais precisamente sua capital,
São Salvador da Bahia de Todos os Santos.
Embora
sedutora, esta versão não é a única. A parada em Salvador também pode ter sido
estratégia intencional do príncipe. Baseado nos livros das embarcações inglesas
que acompanharam D. João, o historiador Kenneth Light levanta a hipótese de que
a decisão de desviar o percurso foi tomada durante a viagem, devido talvez à
força simbólica que representava a Bahia no mundo português.
Coube
ao governador, João de Saldanha da Gama Mello e Torres, o sexto conde da Ponte,
a honra de ser o primeiro anfitrião oficial a receber no Brasil o príncipe
regente vindo de Portugal. A nau Príncipe Real, sob o comando do
capitão-de-mar-e-guerra Francisco José de Castro e Mascarenhas, acompanhada de
outras de bandeira inglesa e portuguesa, baixou suas âncoras no porto de
Salvador no dia 22 de janeiro. Segundo registro de Melo Morais, foi este o
primeiro diálogo entre o príncipe e o governador:
D.
João: — Não vem ninguém de terra?
Conde da Ponte: — Senhor, não veio imediatamente toda a cidade, mesmo ainda estando a nau de V. Alteza sobre os ferros, cumprimentar e felicitar a V. Alteza, porque eu determinei que pessoa alguma aqui se aproximasse, sem que eu primeiro viesse receber as ordens verbais de Sua Alteza Real.
D. João: — Deixe o povo vir como quiser, porque deseja ver-me.
Conde da Ponte: — Senhor, não veio imediatamente toda a cidade, mesmo ainda estando a nau de V. Alteza sobre os ferros, cumprimentar e felicitar a V. Alteza, porque eu determinei que pessoa alguma aqui se aproximasse, sem que eu primeiro viesse receber as ordens verbais de Sua Alteza Real.
D. João: — Deixe o povo vir como quiser, porque deseja ver-me.
No
mesmo dia, o conde da Ponte expediu dois ofícios ao Senado da Câmara. Em um
deles, determinou que os habitantes “deitem luminárias três noites sucessivas”
em homenagem aos visitantes. No outro, instruiu o presidente da Câmara a
respeito de um encontro dos parlamentares com o príncipe regente, a se realizar
no dia seguinte, atendendo ao “ardente desejo, que tem a corporação desse
Senado, de merecer a graça de beijar a mão do mesmo augusto senhor”. Neste
encontro o governador não pôde estar presente, pois as tarefas de anfitrião lhe
exigiam outras providências.
Além
do evento político pela manhã, naquele dia 23 o príncipe ainda retornaria à
cidade à tarde. Passava das quatro horas quando desembarcou, acompanhado de sua
comitiva e cercado por efusiva e curiosa multidão. Em carruagens, foram pela
Rua da Preguiça até a ladeira da Gameleira, chegando ao largo do Theatro.
Seguiram até a Igreja da Sé entre alas de soldados, que lhes faziam
continências. Embalava sua presença o canto de um Te-Deum Laudemos entoado por
músicos da cidade. Depois de toda esta cerimônia, o príncipe voltou a bordo,
onde ficara sua mãe, a rainha.
No
domingo, 24 de janeiro, todos desembarcaram de forma definitiva, com exceção
apenas de D. Carlota Joaquina, que continuou voltando toda noite para dormir a
bordo, mantendo-se assim até o dia 28. A acomodação dos visitantes mudou de
imediato a rotina da cidade. D. João e família hospedaram-se no palácio do
governador. Os outros membros da comitiva real foram para a Casa de Relação
(sede da Justiça), cujo corpo passou a fazer suas sessões nos Paços da Câmara.
Os arquivos oficiais também tiveram que ser deslocados — seu abrigo passou a
ser a secretaria da Ordem Terceira de São Domingos.
Buscando
agradar ao regente de todas as formas, o conde da Ponte ordenou que no dia 28 o
primeiro regimento de linha fizesse exercícios no campo do Forte de São Pedro.
E lá foi o príncipe, com toda a família, assistir à apresentação.
D.
João apreciava a calorosa recepção dos súditos. Grande novidade entre os
moradores, seus passos eram acompanhados com festiva curiosidade. Certo dia, em
uma caminhada pela Rua da Vitória, o monarca decidiu distribuir dinheiro para
recompensar o carinho popular: ordenou a doação de uma pataca de prata (320
réis) a cada pessoa que se aproximasse. Também concedeu a redução de penas a
presos e o perdão a alguns criminosos.
Mas
nem só de amenidades foi a rotina do príncipe regente em terras baianas. As
providências oficiais tomadas por D. João estão entre as primeiras iniciativas
para reestruturar a administração do território brasileiro. No dia 5 de
fevereiro, promoveu a oficialidade local, aumentando os postos militares de
todas as armas. Expediu as primeiras ordens para a construção de 25 barcas
canhoneiras, para a refundição de canhões inúteis e para obras necessárias à
defesa do porto. Tomou medidas para aumentar o efetivo do regimento de
infantaria e criou dois esquadrões de cavalaria.
Por
solicitação do médico José Correia Picanço (1745-1924), mandou criar em
Salvador uma Escola de Cirurgia, com as classes de anatomia e obstetrícia,
sediada no Hospital Militar. Mais tarde, por meio de Carta Régia, a escola foi
transformada em Curso Completo de Cirurgia, originando o núcleo da futura
Faculdade de Medicina da Bahia (que seria criada em 1832).
A
proibição de indústrias no Brasil — determinada pela rainha D. Maria no alvará
de 1785, reafirmando a submissão da economia colonial — começou a cair em
Salvador, quando o príncipe concedeu a Francisco Inácio de Siqueira permissão
para instalar, isenta de impostos, uma fábrica de vidros. Por influência dos
comerciantes locais, que reivindicavam uma seguradora para diminuir os riscos
de seus negócios, D. João autorizou o estabelecimento da Companhia de Seguros
Boa Fé.
A
infra-estrutura da futura capital do reino também começou a ser providenciada
na Bahia: foi aprovado orçamento para a abertura de uma estrada para o Rio de
Janeiro e ordenado que naquela cidade se inaugurasse uma cadeira de Ciência
Econômica. A preocupação do regente é sintomática: um novo corpo dirigente
precisava ser formado para pensar um programa específico para o Estado a ser
estabelecido na Colônia. Nas palavras do próprio D. João, é “absolutamente
necessário o estudo da Ciência Econômica na presente conjuntura em que o Brasil
oferece a melhor ocasião de se pôr em prática muitos dos seus princípios, para
que os meus vassalos, sendo melhor instruídos nele, me possam servir com mais
vantagens”. No mesmo decreto, a escolha do titular da nova cadeira antecipa a
importância de um personagem central na concepção de um Estado imperial
brasileiro: recebeu a incumbência o economista baiano José da Silva Lisboa,
futuro visconde de Cairu (1756-1835).
De
todas as medidas tomadas por D. João na Bahia, a de maior visibilidade e de
maiores conseqüências foi a Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que ficou
conhecida como Decreto de Abertura dos Portos do Brasil.
O
conde da Ponte deixara o príncipe a par da situação de penúria em que se
encontrava a economia baiana. A principal causa era o fechamento dos portos à
saída de qualquer navio, medida tomada em outubro de 1807 pelo próprio D. João,
em cumprimento ao Bloqueio Continental imposto por Napoleão. Portugal vivia
então o dilema de se defender das ameaças francesas e não perder as boas
relações com os ingleses. A vinda da família real para o Brasil demonstrou a
escolha de D. João pela segunda opção, mas a prolongada suspensão do comércio
da Capitania deixou os armazéns abarrotados de açúcar e tabaco.
Não
se pode atribuir apenas à inquietação dos baianos, nem só aos conselhos
liberais dados ao príncipe por Silva Lisboa, a decisão de abrir os portos ao
comércio estrangeiro. Desde a Convenção Secreta de Londres, assinada também em
outubro de 1807 entre Portugal e Inglaterra, preparando o apoio inglês à
transmigração da Corte, os britânicos pleiteavam a franquia de um porto no
Brasil. Pouco antes da partida da Corte, Strangford, representante inglês em
Portugal, insistiu duramente com o ministro Antônio Araújo para que a cláusula
fosse cumprida. Chegou mesmo a fazer ameaças, sendo a princípio repelido por
Araújo.
Ao
chegar ao Brasil, D. João cumpriu o acordo com a Inglaterra. Ao abrir os portos
brasileiros ao “comércio universal”, na prática ele beneficiava apenas os
ingleses, única nação com condições de manter uma frota mercante e explorar o
Atlântico.
A
estada do príncipe em terras baianas começou a se encerrar em 24 de fevereiro
de 1808. Subiram a bordo nesse dia, mas os ventos pouco favoráveis não deixaram
a comitiva partir. Chegaram a voltar para terra no dia 25, zarpando
definitivamente no dia 26 de fevereiro.
A
partida não foi do agrado dos baianos. Desde o primeiro momento em que o
monarca pisou seu solo, já se articulava a permanência definitiva da Corte e a
troca do Rio de Janeiro por Salvador como capital do reino. Para os vereadores,
a localidade era merecedora “de ser elevada a Dignidade de Capital”, por isso
solicitavam ao príncipe que “estabeleça a sua residência nesta cidade, como
aquela construída para cabeça de um império”. Para tanto, os comerciantes se
ofereceram para construir um majestoso palácio.
Já
no fim da estada, uma última tentativa de reter o príncipe foi registrada em
uma memória de louvores a Salvador, de autoria do advogado Balthazar da Silva
Lisboa, irmão do futuro visconde de Cairu. A representação aconselhava a
escolha da Bahia como capital do Brasil. Alguns trechos mostram o teor
suplicante dos baianos. Sobre a importância de Salvador: “Ela foi a primeira
terra do Brasil povoada, e a sua capital, e foi também a primeira que saiu a receber
seu Soberano, o senhor pai da pátria para beijar a Régia e Augusta mão. A sua
elevada posição parece ter sido desenhada pela natureza, com o destino de aí
erigir o trono do maior dos Soberanos”. Sobre o porto e a geografia: “A
abertura do porto por seu vistoso arquipélago onde podem ancorar todas as
armadas do mundo, vários e navegáveis rios que nele entram por muitas foz.
(...) O seu incomparável porto, o mais belo do mundo, está como no centro das
colônias de V. A., que dominando a África lhe abre uma comunicação tanto mais
fácil com a Ásia”. A tentativa de convencimento pela perspectiva de
consolidação de poder: “Vastas matarias ao sul estão convidando aos povos a
admirar a variedade das suas grossas madeiras, atraindo-os ao trabalho de
fabricar tão respeitável marinha que segure não só a estabilidade do trono
Lusitano, mas uma superioridade que ganhe respeito e admiração das nações que
habitam na Europa”.
Um
canto entoado na época ilustra o sentimento geral dos baianos sobre o que
estavam prestes a perder:
Meu príncipe regente
Não saias daqui
Cá ficamos chorando
Por Deus e por ti...
Não saias daqui
Cá ficamos chorando
Por Deus e por ti...
Mas
nada poderia demovê-lo. O próprio conde da Ponte deu parecer encampando a
decisão de sediar a Corte no Rio de Janeiro, convencido principalmente pelas
vantagens militares envolvidas.
Assim,
apesar de todas as tentativas dos baianos de mudar os rumos da História, ela já
estava minimamente estabelecida. De qualquer forma, em pouco mais de 30 dias,
as ações de D. João na Bahia foram um pequeno ensaio do que seria o período joanino
no Brasil.
Eduardo Borges é mestre em História Social
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor na Universidade do Estado
da Bahia (Uneb) e nas Faculdades Jorge Amado.
Saiba Mais:
SOUSA,
Afonso Rui de. História Política e Administrativa da Cidade do Salvador.
Salvador: Prefeitura Municipal, 1949.
MORAIS,
Melo. História da Transladação da Corte de Portugal para o Brasil em 1807-1808.
Rio de Janeiro: Ed. Dupont, 1872.
PINHO,
José Wanderley de Araújo. A Abertura dos Portos. Salvador: Publicações da
Universidade Federal da Bahia, 1961.
NORTON,
Luís. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1979.
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