Em contraste ao luxo da Corte, o povo do Rio no período
joanino sofria com a precariedade urbana, carências e opressão. Conheça a dura
realidade dos que não foram convidados para a festa.
Guilherme Martins
Costa e Marina Lemle
Formiga frita.
Antes de os nobres portugueses chegarem aqui e torcerem o nariz, a iguaria era
bastante consumida pelo povo local. Visto como hábito detestável pelos
europeus, o quitute foi caindo em desuso. Nem por isso passou a ter frango
assado na mesa dos pobres...
O imaginário
popular ilustra o período joanino com palácios, carruagens, banquetes, vestidos
volumosos e leques. Mas a realidade, relegada até pela própria História, era
bem diferente.
Em contraste à
riqueza que aportou no Rio de Janeiro em 1808, as condições urbanas da cidade e
de vida da sua população eram extremamente precárias, e com o aumento repentino
das demandas, as carências ficaram mais evidentes: faltava água, comida e
moradia.
Autor de A corte no exílio: civilização
e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821), o
historiador Jurandir Malerba pinta um quadro caótico do Rio de Janeiro de 1808.
Segundo o professor do departamento de História da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), a cidade era “muito precária, mal traçada e mal cheirosa”.
“Não havia sistema de esgotos. Os
restos da casa, do banheiro à cozinha, eram jogados na praia para que as marés
lavassem, e tudo era transportado em tonéis em ombros escravos. As ruas eram
escuras e perigosas. A água potável era escassa e o abastecimento de alimentos era
deficitário, principalmente o de carnes, cujo consumo era um luxo só presente
em poucas ocasiões festivas no ano”, explica.
Rato, angu e farinha
A vinda da
Corte e os crescimentos da cidade levaram a um aumento rápido da população de
escravos. Em apenas três anos, o número de cativos passou de 9.602 para 18.677,
o que fez com que as ruas cariocas ficassem repletas de negros, escravos ou
livres. Os negros eram cerca de três quartos da população.
A professora
de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF) Sheila de Castro
Farias conta que os escravos se alimentavam basicamente de farinha, feijão e
charque, que eram os alimentos dados pelos seus senhores.
Mas eles
também comiam caça, pesca e banana, a fruta preferida. “Eles gostavam muito de
caçar pequenos animais, e alguns grupos étnicos comiam até camundongos”, conta
a professora.
Nas ruas, em
tendas armadas com ponto fixo em esquinas e praças, negras autorizadas pelo
governo vendiam quitutes e refrescos. “As referências que temos mostram que os
escravos gostavam de ir nessas tendas comer angu com pedaços de carne de porco
e de boi e farinha de milho ou de mandioca”, detalha.
Sheila afirma também que os negros
tinham hábitos alimentares diferenciados, oriundos de sua matriz cultural, e
com inspiração religiosa. Fortalecer o espírito era mais importante que o
paladar ou a nutrição. “Para eles a
refeição era um ritual, e este separava homens e mulheres, que comiam alimentos
diferentes”, conta.
A historiadora Ynaê Lopes dos Santos, da Universidade de São Paulo
(USP), conta que os escravos trabalhavam na alfândega, carregavam produtos ou
os seus senhores, vendiam quitutes, produziam e consertavam sapatos,
trabalhavam em pedrarias e fábricas ou ainda exerciam atividades especializadas,
como carpinteiros, metalúrgicos, barbeiros-cirurgiões.
Segundo Ynaê, muitos não moravam nas residências senhoriais, mas em
casebres próximos ao centro da cidade, quartos alugados ou sublocados, cortiços
e até mesmo quilombos. “Isso permitia que refizessem seus laços de afeto e
familiares que haviam sido cortados pelo escravismo”, diz.
Mas que a vida
era difícil era. Jurandir Malerba conta que, mesmo sendo maioria, os negros
sofriam com a intransigência da polícia, que coibia suas principais atividades
de lazer, como os jogos de casquinha e a capoeira. Havia várias formas de
opressão. De acordo com Vera Tostes, diretora do Museu Histórico Nacional, os
códigos sociais eram bem diferenciados para cada grupo que compunha a sociedade
– a maioria de escravos, os negros livres, os brancos pobres, os funcionários
da coroa e os nobres que chegavam, entre outros.
O historiador
Nireu Cavalcanti, professor da UFF, observa que, equivocadamente, a
historiografia obscureceu a existência do trabalhador assalariado livre:
pessoas pobres, mas não negras, ex-escravas ou mulatas, que viviam da
remuneração pelo trabalho braçal. A chegada da corte, sua montagem e a
quantidade de serviços que exigia, gerou investimentos e aumentou a oferta de
oportunidades na cidade. “Caixeiros, por exemplo, trabalhavam em lojas com
regras estabelecidas em contrato assinado, em troca de proporção dos lucros,
ganhos fixos ou ainda comida e moradia”, exemplifica.
“Católicos”
Já os
escravos, afirma Cavalcanti, viviam nas piores condições e sonhavam com
liberdade. Mas, quando conseguiam, continuavam em desvantagem social.
A religião era
outro fator de opressão. Não se podia exercer abertamente uma religião que não
a católica. “Faziam escondido, mas era motivo de prisão. A irmandade de Santa
Efigênia, por exemplo, proibia a entrada de qualquer negro que fizesse parte de
seitas africanas. E era uma irmandade de negros”, conta Cavalcanti.
Ele explica
que todo ano cada pessoa tinha que se confessar pelo menos uma vez. E quem não
o fizesse tinha seu nome anotado numa lista negra e podia ser preso. Tal
controle fazia com que as pessoas vivessem em grande tensão, temendo o tribunal
eclesiástico.
Apesar da
repressão religiosa, curandeiros atendiam pessoas de todas as classes, e
principalmente os pobres, que não tinham condições de recorrer à medicina
oficial. Tânia Salgado Pimenta, professora da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), investigou documentos da Fisicatura-mor, órgão responsável pela
regulamentação e fiscalização das atividades relacionadas à saúde pública entre
1808 e 1828.
“Escravos, forros e mulheres
desenvolviam atividades menos prestigiadas, como os ofícios de sangrador,
parteira ou curandeiro. A hierarquia adotada pela instituição reafirmava o
lugar de cada um, confirmando a posição que tinham na sociedade. Os
conhecimentos e as práticas de cura populares eram formalmente desvalorizados”,
escreveram em artigo publicado na revista
História, Ciências, Saúde-Manguinhos. Mas a população em geral confiava em seus
curadores.
“Eles nutriam
concepções de doença e de cura mais afinadas com as da população,
preocupando-se também com dimensões espirituais atribuídas como causas às
enfermidades”, explica Tania.
Obras de Jean Baptiste
Debret Pinturas publicadas em Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil (1834-1839)
Saiba mais:
E Portugal fugiu para cá - Leia a
edição especial de janeiro na íntegra e artigos publicados
anteriormente sobre a vinda da Corte portuguesa para o Brasil
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