sábado, 20 de julho de 2013

O outro lado de 1808


Em contraste ao luxo da Corte, o povo do Rio no período joanino sofria com a precariedade urbana, carências e opressão. Conheça a dura realidade dos que não foram convidados para a festa.

Guilherme Martins Costa e Marina Lemle
Formiga frita. Antes de os nobres portugueses chegarem aqui e torcerem o nariz, a iguaria era bastante consumida pelo povo local. Visto como hábito detestável pelos europeus, o quitute foi caindo em desuso. Nem por isso passou a ter frango assado na mesa dos pobres...
O imaginário popular ilustra o período joanino com palácios, carruagens, banquetes, vestidos volumosos e leques. Mas a realidade, relegada até pela própria História, era bem diferente.
Em contraste à riqueza que aportou no Rio de Janeiro em 1808, as condições urbanas da cidade e de vida da sua população eram extremamente precárias, e com o aumento repentino das demandas, as carências ficaram mais evidentes: faltava água, comida e moradia.
Autor de A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821), o historiador Jurandir Malerba pinta um quadro caótico do Rio de Janeiro de 1808. Segundo o professor do departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a cidade era “muito precária, mal traçada e mal cheirosa”.
“Não havia sistema de esgotos. Os restos da casa, do banheiro à cozinha, eram jogados na praia para que as marés lavassem, e tudo era transportado em tonéis em ombros escravos. As ruas eram escuras e perigosas. A água potável era escassa e o abastecimento de alimentos era deficitário, principalmente o de carnes, cujo consumo era um luxo só presente em poucas ocasiões festivas no ano”, explica.
Rato, angu e farinha
A vinda da Corte e os crescimentos da cidade levaram a um aumento rápido da população de escravos. Em apenas três anos, o número de cativos passou de 9.602 para 18.677, o que fez com que as ruas cariocas ficassem repletas de negros, escravos ou livres. Os negros eram cerca de três quartos da população.
A professora de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF) Sheila de Castro Farias conta que os escravos se alimentavam basicamente de farinha, feijão e charque, que eram os alimentos dados pelos seus senhores.
Mas eles também comiam caça, pesca e banana, a fruta preferida. “Eles gostavam muito de caçar pequenos animais, e alguns grupos étnicos comiam até camundongos”, conta a professora.
Nas ruas, em tendas armadas com ponto fixo em esquinas e praças, negras autorizadas pelo governo vendiam quitutes e refrescos. “As referências que temos mostram que os escravos gostavam de ir nessas tendas comer angu com pedaços de carne de porco e de boi e farinha de milho ou de mandioca”, detalha.
Sheila afirma também que os negros tinham hábitos alimentares diferenciados, oriundos de sua matriz cultural, e com inspiração religiosa. Fortalecer o espírito era mais importante que o paladar ou a nutrição. “Para eles a refeição era um ritual, e este separava homens e mulheres, que comiam alimentos diferentes”, conta.
A historiadora Ynaê Lopes dos Santos, da Universidade de São Paulo (USP), conta que os escravos trabalhavam na alfândega, carregavam produtos ou os seus senhores, vendiam quitutes, produziam e consertavam sapatos, trabalhavam em pedrarias e fábricas ou ainda exerciam atividades especializadas, como carpinteiros, metalúrgicos, barbeiros-cirurgiões.
Segundo Ynaê, muitos não moravam nas residências senhoriais, mas em casebres próximos ao centro da cidade, quartos alugados ou sublocados, cortiços e até mesmo quilombos. “Isso permitia que refizessem seus laços de afeto e familiares que haviam sido cortados pelo escravismo”, diz.
Mas que a vida era difícil era. Jurandir Malerba conta que, mesmo sendo maioria, os negros sofriam com a intransigência da polícia, que coibia suas principais atividades de lazer, como os jogos de casquinha e a capoeira. Havia várias formas de opressão. De acordo com Vera Tostes, diretora do Museu Histórico Nacional, os códigos sociais eram bem diferenciados para cada grupo que compunha a sociedade – a maioria de escravos, os negros livres, os brancos pobres, os funcionários da coroa e os nobres que chegavam, entre outros.
O historiador Nireu Cavalcanti, professor da UFF, observa que, equivocadamente, a historiografia obscureceu a existência do trabalhador assalariado livre: pessoas pobres, mas não negras, ex-escravas ou mulatas, que viviam da remuneração pelo trabalho braçal. A chegada da corte, sua montagem e a quantidade de serviços que exigia, gerou investimentos e aumentou a oferta de oportunidades na cidade. “Caixeiros, por exemplo, trabalhavam em lojas com regras estabelecidas em contrato assinado, em troca de proporção dos lucros, ganhos fixos ou ainda comida e moradia”, exemplifica.
“Católicos”
Já os escravos, afirma Cavalcanti, viviam nas piores condições e sonhavam com liberdade. Mas, quando conseguiam, continuavam em desvantagem social.
A religião era outro fator de opressão. Não se podia exercer abertamente uma religião que não a católica. “Faziam escondido, mas era motivo de prisão. A irmandade de Santa Efigênia, por exemplo, proibia a entrada de qualquer negro que fizesse parte de seitas africanas. E era uma irmandade de negros”, conta Cavalcanti.
Ele explica que todo ano cada pessoa tinha que se confessar pelo menos uma vez. E quem não o fizesse tinha seu nome anotado numa lista negra e podia ser preso. Tal controle fazia com que as pessoas vivessem em grande tensão, temendo o tribunal eclesiástico.
Apesar da repressão religiosa, curandeiros atendiam pessoas de todas as classes, e principalmente os pobres, que não tinham condições de recorrer à medicina oficial. Tânia Salgado Pimenta, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), investigou documentos da Fisicatura-mor, órgão responsável pela regulamentação e fiscalização das atividades relacionadas à saúde pública entre 1808 e 1828.
“Escravos, forros e mulheres desenvolviam atividades menos prestigiadas, como os ofícios de sangrador, parteira ou curandeiro. A hierarquia adotada pela instituição reafirmava o lugar de cada um, confirmando a posição que tinham na sociedade. Os conhecimentos e as práticas de cura populares eram formalmente desvalorizados”, escreveram em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos. Mas a população em geral confiava em seus curadores.
“Eles nutriam concepções de doença e de cura mais afinadas com as da população, preocupando-se também com dimensões espirituais atribuídas como causas às enfermidades”, explica Tania.
Obras de Jean Baptiste Debret  Pinturas publicadas em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1834-1839)
Saiba mais:
E Portugal fugiu para cá - Leia a edição especial de janeiro na íntegra e artigos publicados anteriormente sobre a vinda da Corte portuguesa para o Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário