Entre ser derrotado por Napoleão ou ver o Brasil invadido
pela Inglaterra, D. João VI escapou dos dois.
Marieta Pinheiro de Carvalho
O
poderoso exército napoleônico às portas da fronteira. Espreitando o porto de
Lisboa, navios ingleses prontos para atacar. Do outro lado do oceano, a enorme
e rica colônia brasileira exposta a uma possível invasão. Pressionado por duas
potências rivais, a escolha de Portugal era das mais difíceis. Fosse qual fosse
à decisão, o castigo do inimigo era certo.
Pois naquele fim de 1807, o que se viu foi uma fuga. Uma fuga em massa de nobres que se apinharam no porto em busca de lugares nas naus que rumariam para o Brasil. Vários atropelos aconteceram: bagagens ficaram em terra, pertences de pessoas que não viajariam foram parar nos navios, parentes foram separados durante a viagem.
Pois naquele fim de 1807, o que se viu foi uma fuga. Uma fuga em massa de nobres que se apinharam no porto em busca de lugares nas naus que rumariam para o Brasil. Vários atropelos aconteceram: bagagens ficaram em terra, pertences de pessoas que não viajariam foram parar nos navios, parentes foram separados durante a viagem.
Mas a impressão de retirada covarde
e atabalhoada não se justifica. Historiadores do século XX demonstram que a
transferência da Corte não foi nada improvisada. Cogitada em diversas outras
ocasiões (veja
o conteúdo complementar no fim deste texto), a mudança deve ser entendida de acordo com a política externa
lusitana do período. O reino optava pela neutralidade nos conflitos
diplomáticos para evitar choques maiores com as duas principais potências
políticas e militares da época: França e Inglaterra. A primeira desfrutava de
poderio terrestre, enquanto a segunda gozava de supremacia marítima. Muitas
vezes, entretanto, era impossível manter a neutralidade - daí a necessidade de
eleger uma aliança mais sólida.
Havia aqueles que defendiam a opção
pela França. Um dos principais expoentes desta idéia era Antônio de Araújo de
Azevedo (1754-1817), futuro conde da Barca, ministro dos Negócios Estrangeiros
e da Guerra entre 1804 e 1807. Ele defendia a aproximação com o regime napoleônico,
o que se tornou insustentável em 1807, quando se intensificaram as ameaças
inglesas e francesas.
A coligação com a Inglaterra é
explicada basicamente pelo temor de um ataque às colônias (principalmente o
Brasil), diante do forte poderio naval britânico. O receio não era infundado,
afinal o primeiro-ministro da Inglaterra, William Pitt (1759-1806), em discurso
no Parlamento, defendera que convinha à “Grã-Bretanha fazer assentar o trono do
império português” na América, onde d. João reconquistaria seu reino e ditaria
“as leis à Europa, e com o cetro de ferro poderia castigar a França dos seus
crimes, e a Espanha [aliada da França] da sua perfídia”. O primeiro-ministro
inglês defendia abertamente, em hipótese de uma aliança luso-francesa, a
invasão do Brasil.
Os portugueses foram obrigados a
agir rapidamente. D. Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812), político experiente
que estava há quatro anos afastado do governo, foi chamado em 1807 a reintegrar
o gabinete de d. João como conselheiro de Estado. Ele defendia a tese de que
Portugal dependia inteiramente do Brasil. Desde 1803, aliás, alertava para a
necessidade de defesa contra os franceses. Os domínios portugueses corriam o
risco de serem dilacerados entre França e Inglaterra, caso uma postura
pró-britânica não fosse assumida. D. Rodrigo destacava a relevância da América
portuguesa como a “mais essencial parte da monarquia”. Em hipótese de invasão
francesa, existiria “a certeza de ir a qualquer caso V.A.R. [Vossa Alteza Real]
criar no Brasil um grande império, e segurar para o futuro a reintegração
completa da monarquia em todas as suas partes”. A transferência da Corte, para
o futuro conde de Linhares, aparece como último recurso e associada à
necessidade de defesa da soberania real. A opinião era compartilhada por outros
estadistas que em períodos de maior iminência de invasão francesa enunciavam
tal idéia. Foi o caso do marquês de Alorna (1754-1813), que em 1801 propôs ao
príncipe: “V.A.R. tem um grande Império no Brasil, e o mesmo inimigo que ataca
agora com tanta vantagem, talvez que trema e mude de projeto, se V.A.R. o
ameaçar de que se dispõe a ir ser Imperador naquele vasto território”.
De qualquer forma, estava claro que,
na iminência de um ataque, a mudança seria a melhor opção para preservar o trono
português, independentemente de que lado se fizesse a aliança. Mas era hora de
decidir. O conflito na Europa se agravava, e o debate político em Portugal
buscava uma definição: afinal, a quem se aliar? Em julho de 1807, Napoleão
Bonaparte (1769-1821), imperador da França, insistiu que o governo português
prendesse e seqüestrasse os bens dos súditos britânicos, fornecesse dinheiro
para sustentação da guerra e reunisse suas forças navais às franco-espanholas.
E deu como prazo-limite 1o de setembro. A Inglaterra, por sua vez, estacionou
navios na frente de Lisboa, sufocando o comércio e ameaçando uma intervenção
militar.
”. Melo e Castro, que havia sido
embaixador de Portugal em Londres, observava a necessidade de o príncipe
regente retirar-se para o Brasil, de forma a preservar a monarquia.?As reuniões no Conselho de Estado
português se intensificaram. D. João de Almeida de Melo e Castro (1756-1814)
perguntava: valeria a pena “os terríveis golpes” ao comércio, “o retardo da
correspondência com nossas colônias, [...] para saciar a ambição e animosidade
da França
Chegou-se a preparar uma frota para
a transferência do filho de D. João, o príncipe da Beira, d. Pedro de Alcântara
(1798-1834), futuro imperador d. Pedro I do Brasil. O príncipe, que tinha
apenas 9 anos, deveria ser acompanhado ao Rio de Janeiro por d. Fernando José
de Portugal, que governou a Bahia e foi vice-rei do Brasil. Tal medida chegou a
ser informada à França, mas segundo o historiador Enéas Martins Filho era
apenas uma cortina de fumaça para ocultar a trama secretamente organizada: a
mudança de toda a família real.
Longe de ter sido uma fuga
impensada, a transferência da sede do governo português para seus domínios
americanos possibilitou a permanência do trono de Portugal nas mãos da Casa de
Bragança. Do outro lado do Atlântico, inaugurou um novo momento na história do
Brasil.
Conteúdo complementar: Uma idéia fixa
Marieta Pinheiro de Carvalho é doutoranda em História Política
pela UERJ e autora da dissertação Uma idéia de cidade ilustrada: as
transformações urbanas da nova corte portuguesa (1808-1821), defendida nessa
mesma universidade em 2003.
Saiba
Mais:
MANCHESTER, Alan K. “A transferência
da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro”.In.: Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional,
1968, vol. 277, pp.3-44.
MARTINS FILHO, Enéas. O conselho de
estado português e a transmigração da família real em 1807. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1968. (deixar)
LIMA, Oliveira. D. João VI
no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.LYRA, Maria de Lourdes Viana A utopia do poderoso Império. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.
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