Quase um ano após o Grito do Ipiranga, o Maranhão se mantinha
fiel a Portugal e resistia, armado, à “autonomia” que vinha do Sul.
Marcelo Cheche
Galves
A independência do Brasil foi feita aos poucos. Bem
depois do famoso Grito do Ipiranga, um bom pedaço do país mantinha-se fiel ao
Império português. O Maranhão foi uma das últimas províncias a aderir ao
“chamado” de D. Pedro I. E não sem resistência.
Para se entender o que acontecia naqueles anos
conturbados, um mapa pode ajudar. Localizado no extremo Norte, o Maranhão vivia
isolado da longínqua capital, o Rio de Janeiro. Lisboa, ao contrário, era logo
ali. Pelo mar, ficava bem mais perto que o Sudeste. E não só do ponto de vista
geográfico, mas também por laços econômicos e políticos, os maranhenses tinham
motivos para resistir à incorporação de sua província às demais, já convertidas
à independência.
Nos primeiros meses de 1823, tropas organizadas
a partir do Ceará e do Piauí –emancipados, respectivamente, em outubro de 1822
e março do ano seguinte – invadiram o Maranhão com o objetivo de “libertá-lo”
do domínio português. Encontraram uma população nada disposta a ser libertada.
Fiel à Corte lusa, o governo provincial defendia
que o Maranhão deveria permanecer unido a Portugal. E praticamente não havia
oposição a esta tese. Toda a imprensa agia em uníssono: o jornal e os folhetos
impressos na única tipografia da cidade (controlada pelo governo) juntavam-se
às publicações que chegavam de Lisboa e Londres nas denúncias contra o “separatismo
das províncias do Centro-Sul”. Ainda em junho de 1822, o Conciliador, único
jornal da capital, repudiou os projetos de criação de um Conselho de
Procuradores e de uma Assembléia Constituinte, a serem instaurados no Rio de
Janeiro. D. Pedro era alvo de pesadas acusações. Segundo o jornal, o príncipe
regente chefiava uma “facção criminosa” e cercava-se de “aduladores e
cortesãos” que queriam “levar o Brasil ao despotismo monárquico e, quem sabe, à
república”.
Em setembro, confirmada a independência no Sul,
o Conciliador classificou-a como uma quebra do juramento de fidelidade ao rei
português. Criticava o fato de D. Pedro I governar o Brasil sem lei, enquanto
Portugal era regido por uma Constituição. Dois meses depois, o jornal
reforçava a idéia de resistir à emancipação do Brasil: “Se o Sul podia se
separar de Portugal, o Norte poderia fazer o mesmo com o Sul”, argumentava,
pregando a união de Pará, Piauí e Maranhão contra o despotismo, “que mata a
liberdade das nações”.
Mas o centro da disputa local ia além dessas
motivações políticas e ideológicas. O que estava mesmo em jogo era a indicação
para cargos públicos e a obtenção de privilégios. Na época, São Luís tinha
cerca de 30 mil habitantes. A população masculina, adulta e branca não chegava
a quatro mil pessoas. Entre elas estavam os “homens de bem”: importantes
fazendeiros e comerciantes que tinham relação próxima com o governo provincial,
e por vezes chegavam a ocupar cargos públicos. Em sua maioria, eram membros do
Corpo de Comércio e Agricultura da cidade.
Com o início dos conflitos na divisa entre o
Piauí e o Maranhão, os “homens de bem” se organizaram para reunir fundos e
arcar com as despesas da guerra. Assumiram também o comando de regimentos e
criaram corpos de voluntários. O principal deles foi a Legião Cívica de São
Luís, proposta em maio de 1823 pelo português Antonio Marques da Costa Soares.
A iniciativa defendia a substituição de alguns comandantes, castigo imediato
aos desertores e maior proteção à ilha onde fica a capital maranhense. Costa
Soares era um dos redatores do Conciliador, e nos momentos de folga do trabalho
cumpria seu papel na Legião Cívica, colaborando na vigilância da cidade.
Nem as sucessivas vitórias das tropas do Ceará e
do Piauí contra o exército português em regiões do interior do Maranhão – como
Caxias, Pastos Bons, Brejo e Itapecuru – nem a incorporação de destacamentos
portugueses à “causa brasileira” fizeram o jornal admitir a possibilidade da
independência. Segundo o Conciliador, essa perspectiva em nada entusiasmava a
opinião pública de São Luís, constituída dos “verdadeiros portugueses”. Em
junho de 1823, a capital se viu cercada, e ainda assim não se registraram nas
ruas sinais de apoio à emancipação da província.
O cerco não esmoreceu a resistência dos
“cidadãos de bem”, que no dia 12 de julho receberam uma notícia surpreendente:
D. João VI havia restabelecido seus poderes absolutos em Portugal, rasgando a
Constituição, suprimindo as Cortes e abrindo a possibilidade de uma
reaproximação com seu filho D. Pedro I. Foi a deixa para a Junta do Governo e
da Câmara nomear uma comissão para negociar um armistício – para os líderes da
província, seu futuro deveria ser decidido, pacificamente, entre D. João VI e
D. Pedro I. Mas a iniciativa foi em vão: no dia seguinte, os tenentes de 1ª
linha Francisco Antonio da Costa Barradas, José Cursino Raposo e o alferes
Joaquim José dos Reis lideraram setores das tropas que se puseram à frente do
largo do Palácio e tentaram proclamar a independência. A reação do comando do
Exército foi imediata. Um miliciano e um soldado da polícia, ambos fiéis a
Portugal, ficaram feridos. Vários integrantes das tropas foram presos, e os
líderes fugiram para evitar a prisão.
O clima de tensão se agravou como nunca. Na
Bahia, a independência havia chegado em 2 de julho. Em conseqüência, navios
portugueses fugidos daquela província rumaram para a capital do Maranhão.
Chegaram no dia 14, renovando as esperanças de resistência, quando a Câmara
Geral se preparava para discutir a adesão de São Luís à independência, uma vez
que o restante do Maranhão já havia sido incorporado. Não se podia negar o
avanço dos “brasileiros”. Era o que admitia Antonio Marques da Costa Soares no
Conciliador, atribuindo o fato a três causas: o medo da população diante da
iminência de um confronto, a demora no envio de tropas de Portugal em socorro
do Maranhão e a falta de carne. A escassez do produto era provocada pelo cerco
à cidade, que se intensificava.
Para Joaquim José da Silva Maya (1811-1893), um
dos membros da esquadra portuguesa recém-chegada da Bahia, a tensão que tomava
conta de São Luís também se devia a outro fator. Em seu diário, ele descreve o
apoio crescente à independência, especialmente por parte dos homens “de cor”. O
percentual de “pretos livres”, “pretos cativos”, “mulatos livres” e “mulatos
cativos” era superior a 77% da população maranhense. Para os escravos, aliar-se
aos “brasileiros” era uma promessa de liberdade. No interior, muito fugiram e
aderiram às tropas pela independência. Na capital, participaram dos conflitos
de rua.
A situação pendeu de vez para o lado da
independência em 26 de julho, quando aportou em São Luís o navio Pedro I – cujo
nome indica de que lado estava. Sob o comando do almirante britânico lorde
Cochrane (1775-1860), o navio vinha da Bahia, onde apoiara a independência
daquela província. Agora chegava para consolidar a conquista do Maranhão. No
dia 27, 200 homens desembarcaram na cidade e garantiram para o dia seguinte a
proclamação da Independência.
Festa e comoção popular? Nem sinal. Foi uma
cerimônia discreta. Seis tripulantes do navio se juntaram a 91 cidadãos, entre
eles os membros da Junta de Governo e da Câmara e outras autoridades, que,
discretamente, saudaram a “Adesão ao Império Brasílico, e Governo do Imperador,
o Senhor Dom Pedro Primeiro”. Do lado de fora do Palácio havia poucas pessoas.
A independência foi registrada com um simples repicar dos sinos, uma salva de
tiros e o reconhecimento da “Bandeira Brasílica”. Muito pouco, se comparado às
multidões que celebraram a incorporação da cidade à Revolução do Porto (1821) e
o nascimento dos membros da família real.
Mesmo sem grandes manifestações públicas, os
homens “de cor” acreditavam que a independência poderia lhes trazer benefícios.
O escritor João Dunshee de Abranches Moura, no romance A Setembrada (1931), faz
alusão a um curioso episódio ocorrido às vésperas da proclamação. Alguns negros
teriam tomado canoas e se dirigido ao navio Pedro I para pedir asilo ao
almirante Cochrane, na esperança de que lhes fosse assegurada a liberdade. Em
vão. Após a independência, os negros participaram dos saques às lojas e das
surras aplicadas aos cidadãos acusados de conspirar contra a emancipação.
Libertos compuseram as tropas responsáveis pela segurança da cidade. Em meio à
instabilidade vivida nos dezoito meses após a independência da província, os
negros chegaram a ser convocados para participar da política.
Os brancos, por sua vez, agora divididos em
“brasileiros” e “portugueses”, tiveram destinos diversos. Os principais membros
do Corpo de Comércio de São Luís foram expulsos, sob a acusação de financiarem
a resistência. A medida favoreceu os maiores produtores de algodão e arroz do
Maranhão, que se livraram de suas dívidas, pois seus credores haviam sido
banidos da província. E eles ainda assumiram postos importantes no novo
governo. A grande maioria dos funcionários da administração foi demitida e
substituída por parentes e amigos dos membros da Junta que assumiu
provisoriamente o governo.
As disputas em torno da administração pública
estavam apenas começando. Alguns “heróis da independência” apressaram-se a
enviar relatos de seu desempenho no conflito, pedindo cargos que recompensassem
os “sacrifícios feitos em nome da pátria”. José Felix Pereira de Burgos
(1780-1854) foi um deles. Tenente-coronel de 2ª linha que “aderiu à causa” em
junho de 1823, tornou-se governador de Armas e encaminhou ofício a José
Bonifácio relatando as “sucessivas fadigas” dele e de sua família para realizar
o “projeto patriótico da independência”. Em meio às lembranças do tempo em que
fora aluno do mestre em Coimbra, pediu que seus irmãos – os militares Carlos,
Antonio e Honório – gozassem de proteção real e fossem “contemplados conforme o
justo”.
Novos tempos, velhas práticas...
Marcelo Cheche Galves é professor de História da Universidade Estadual
do Maranhão e autor da dissertação “Jornais e políticos no município de Avaré”
(UNESP, 2000).
Saiba
Mais - Bibliografia:
DEL PRIORE, Mary & GOMES, Flávio. Os
senhores dos rios: Amazônia, margens e histórias. Rio de Janeiro:
Campus/Elsevier, 2004.
JANCSÓ, István (org). Independência: história e
historiografia. São Paulo: Hucitec-Fapesp, 2005.
MALERBA, Jurandir (org). A independência
brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das.
Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-1822).
Rio de Janeiro: Revan, 2003.
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em
construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
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