A
vizinhança em ebulição
Em toda a América Latina,
o início do século XIX foi marcado por guerras, revoluções e reviravoltas
políticas...
Maria Elisa Mäder
Guerras, revoluções, novas repúblicas,
reviravoltas políticas. Enquanto o Brasil era governado pelo rei de Portugal,
sua vizinhança foi um barril de pólvora. Em menos de duas décadas, a América
espanhola se transformou radicalmente, numa sucessão de independências
conquistadas na ponta da espada.
Histórias diferentes, mas com o mesmo
ponto de origem. A invasão napoleônica da Península Ibérica em 1807 provocou
mudanças definitivas nos domínios coloniais de Portugal e Espanha. D. João
viu-se forçado a transferir sua Corte para o Brasil a fim de manter o trono. Já
o rei espanhol, Fernando VII, não teve a mesma sorte e acabou deposto. Pior: o
trono passou para as mãos de José Bonaparte, irmão de Napoleão. Como
conseqüência, suas colônias na América enfrentaram uma fase de intensa
experimentação política.
No século anterior, os reinados de
Carlos III e Carlos IV (que em 1808 abdicaria do trono em favor de seu filho
Fernando VII) haviam testemunhado o desenvolvimento de um pensamento político
moderno iluminista – que enfatizava a liberdade, a igualdade, os direitos
civis, o governo das leis, a representação constitucional e o liberalismo
econômico – entre pequenos, mas significativos, grupos de espanhóis
peninsulares e espanhóis americanos. Baseados nestas idéias, os dois monarcas
da dinastia Bourbon impuseram às colônias uma série de reformas políticas e administrativas,
com o objetivo de aumentar a prosperidade econômica da Espanha e recuperar a
supremacia política perdida. As medidas agravaram o descontentamento da elite
colonial crioula (como eram chamados os brancos nascidos na América espanhola)
ao afrontar os sentimentos de autonomia e de identidade que vinham ganhando
corpo durante os três séculos de colonização.
A desarrumação causada pela invasão
napoleônica abriu caminho para que esta elite crioula motivasse um crescente
debate nas colônias sobre soberania, representação do povo na política, a idéia
de nação e a necessidade de dar uma nova Constituição à monarquia.
A administração do reino sofreu
sucessivas mudanças. A princípio, formaram-se, na Espanha e na América, juntas
de governo locais, que invocavam o princípio legal hispânico de que a
soberania, na ausência do rei, retornaria aos povos. A iniciativa gerou forte
oposição dos “realistas” na América. Em setembro de 1808, foi criada a Junta
Suprema Central e Governativa do Reino, que, como o nome sugeria, centralizava
os poderes Executivo e Legislativo, como uma tentativa de solucionar a crise da
monarquia. As vitórias francesas de 1809 levaram à dissolução da Junta no ano
seguinte. Em seu lugar designou-se um Conselho de Regência, logo questionado
por algumas províncias da Espanha e vários vice-reinos da América.
A situação demandava uma solução. Em
1812, a reunião das Cortes em Cádiz, na Espanha, para a elaboração de uma
Constituição, dedicou-se a encaminhar as preocupações das províncias da Espanha
e de muitas partes do Novo Mundo. O Parlamento espanhol tentava, assim, prover
um meio pacífico aos autonomistas americanos para a obtenção da ordem local. Os
extensos debates naquele congresso transformaram o mundo hispânico.
A Constituição promulgada não foi apenas
um documento espanhol, foi igualmente americano. Pode-se dizer que, sem a
participação dos deputados do Novo Mundo, dificilmente a Carta de 1812 tomaria
a forma que tomou. Foram abolidos as instituições senhoriais, a Inquisição, o
tributo pago pelas comunidades indígenas e o trabalho forçado – como a mita na
região andina. Também foi criado um estado unitário com leis iguais para todas
as partes da monarquia, restringida a autoridade do rei e confiado às Cortes o
poder de decisão final. O direito de voto conferido a todos os homens (com
exceção dos de ascendência africana), sem exigência de renda ou grau de
alfabetização, torna a Constituição de Cádiz superior às dos demais governos
representativos de sua época – como Grã-Bretanha, Estados Unidos e França –,
estendendo direitos políticos à vasta maioria da população adulta masculina.
Mas os avanços representativos não foram
suficientes para conter as guerras civis que desde 1810 se desenrolavam na
América. Estavam em lados opostos aqueles que, insistindo na formação de juntas
locais, se recusavam a aceitar o governo na Espanha, e aqueles que reconheciam
a autoridade central da Regência e das Cortes. As divisões políticas entre os
membros das elites mesclavam-se às antipatias regionais e tensões sociais.
Em 1814 os conflitos se agravaram.
Naquele ano, após a derrota de Napoleão, Fernando VII voltou ao trono, aboliu
as Cortes e a Constituição e restaurou o absolutismo. Livres das restrições
constitucionais, as autoridades régias no Novo Mundo perseguiram e sufocaram a
maioria dos movimentos que buscavam autonomia. Somente a região mais isolada do
Rio da Prata permaneceu fora do alcance da repressão deflagrada pela já
enfraquecida monarquia espanhola.
A repressão desencadeou reações decisivas entre os partidários da
independência, ainda em minoria. Em 1817, na Venezuela, os republicanos
retomaram a luta iniciada por Simon Bolívar seis anos antes, quando era oficial
do Exército revolucionário e foi declarada a independência. Em 1812, os espanhóis
haviam retomado o poder e ele deixara o país. Retornou em 1819, com o apoio do
independente Haiti, para retomar a revolução. Naquele ano, habitantes da Nova
Granada (hoje Colômbia, Venezuela e Equador) e venezuelanos derrotaram os
realistas em Boyacá, forçando o vice-rei e outros altos oficiais a deixar
Bogotá.
O ritmo e a
intensidade das lutas variaram bastante. Nas regiões no norte da América do
Sul, a militarização e a centralização política foram características
marcantes. Convocado por Bolívar em fevereiro de 1819, o Congresso de Angostura
(hoje chamada Ciudad Bolívar), na Venezuela, legitimou o seu poder. Em
dezembro, criou-se a República da Colômbia – por vezes chamada de Grã Colômbia
–, incorporando Venezuela, Nova Granada e Quito. Contrariamente ao espírito da
Constituição de Cádiz, a nova Constituição colombiana criou um governo
extremamente centralizado, com autoridade excessiva atribuída ao presidente
Bolívar.
No sul, o militar
José de San Martín, depois de bem-sucedida campanha nos Andes, obteve em
fevereiro de 1818 uma vitória decisiva sobre as forças espanholas na batalha de
Chacabuco. No Rio da Prata (hoje Argentina) e na capitania geral do Chile, os
autonomistas ganharam controle precocemente, depois de poucos conflitos armados
no combate aos realistas. Depois de 1818, os contingentes militares deixaram
essas regiões para assegurar a independência do Peru, ao norte, mesmo com as
tropas realistas permanecendo no sul.
A aprovação de outra
Constituição em 1820 na Espanha provocou respostas diferentes nas quatro
grandes regiões americanas (Nova Espanha, Prata, Nova Granada e Peru). Os povos
da Nova Espanha (atual México) e da Guatemala receberam as notícias com
entusiasmo, e nos meses seguintes realizaram eleições para diferentes
ayuntamientos constitucionais, deputações provinciais e as Cortes. A
instabilidade política da Espanha, que já durava cerca de doze anos, havia
convencido uma parte dos novohispanos que era mais prudente estabelecer um
governo autônomo no interior da monarquia. Quanto aos autonomistas, os membros
da elite que haviam adquirido poder com os processos de independência, optaram
pela instauração de uma monarquia constitucional.
Dois cursos de ação
foram seguidos. Os deputados da Nova Espanha junto às Cortes propuseram um
projeto para a autonomia do Novo Mundo que criava três grandes reinos
americanos governados por príncipes espanhóis e aliados à Península. Mas a
maioria espanhola nas Cortes rejeitou a proposta, temerosa de dar aos
americanos a autonomia buscada desde 1808. Ao mesmo tempo, autonomistas da Nova
Espanha se aliaram ao coronel Agustín de Iturbide, um realista simpático ao
plano de autonomia, que muito se assemelhava ao proposto às Cortes. A
independência do México foi assegurada em 1821 sem confronto militar, quando
Iturbide e seus seguidores ganharam o apoio da maioria do exército real. No ano
seguinte, Iturbide tornou-se imperador do México, como Iturbide I.
O episódio
desencadeou adesões das províncias da América Central, que também declararam
sua independência naquele ano, juntando-se ao Império mexicano. Em 1823,
entretanto, com o fim do período monárquico (Iturbide se indispôs com
militares, que o depuseram), separaram-se do México e passaram a formar a
Federação Centro- Americana.
Na América do Sul, em
1820, as tropas republicanas no norte deram início à libertação da Venezuela e
de Nova Granada. Em outubro do mesmo ano, Guayaquil (no atual Equador)
tornou-se independente e, formando uma república, tentou, sem sucesso, libertar
as províncias das terras altas, então pertencentes à jurisdição de Quito. Uma
força mista, composta, sobretudo por tropas locais, reunindo colombianos e
homens do exército de San Martín sob o comando do general Antonio José de Sucre,
acabou derrotando as tropas espanholas em Quito, em maio de 1822. Bolívar, que
chegou do norte em junho com mais combatentes colombianos, incorporou a nova
região libertada à República da Colômbia. Decretou, a seguir, lei marcial no
antigo reino de Quito, de modo a poder melhor recrutar homens, confiscar
dinheiro, víveres e suprimentos para continuar a luta contra os realistas no
Peru, o último bastião do poder do rei de Espanha na América do Sul.
As forças sulinas
lideradas por San Martín chegaram a Lima em agosto de 1820. Seu exército de
libertadores compunha-se de chilenos e rio-platenses. Embora controlasse o
litoral, San Martín não conseguiu derrotar os realistas no altiplano. Os
constitucionalistas espanhóis quase expulsaram suas tropas do litoral. A
vitória haveria de esperar pela chegada do exército de Bolívar à região, anos
depois. E mesmo com a derrota impingida aos realistas pelo general Sucre na
batalha de Ayacucho, em dezembro de 1824, a região do Alto Peru continuaria sob
o controle das forças realistas, que só se renderiam em 1826.
Um ano depois do
reconhecimento da Independência do Brasil por Portugal, terminava o processo de
independência das colônias hispano-americanas. O continente americano saía
desse processo radicalmente transformado. Novos estados politicamente soberanos
vão se afirmar deste lado do Atlântico, sob a forma de repúblicas modernas,
tornando indelével o modelo de moderno estado-nação que se generalizará em todo
o hemisfério ocidental no início do século XX.
Maria Elisa Mäder é doutora em História Social
pela Universidade Federal Fluminense e professora de História da América na
PUC-Rio. Organizadora, com Marco Antonio Pamplona, de Revoluções de
independências e nacionalismos nas Américas (Coleção Margens, Paz e Terra, 2007).
Saiba Mais:
BETHELL, Leslie Ed.
(org.). História da América Latina. Da Independência até 1870. Vol. III,
São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Fundação Alexandre
Gusmão, 2001.
FUENTES, Carlos. O
Espelho Enterrado. Reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001.
GUERRA,
François-Xavier. “A Nação na América espanhola: a questão das origens”, Revista
Maracanã. Rio de Janeiro: Uerj, 1999/2000, Ano I, nº 1.
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